Intolerância religiosa: o retrato de uma fé fraca

Rafaela Paes de Campos
É verdadeiramente bela a teoria que diz que a fé nos torna mais fortes. Contudo, nem sempre. Há gritantes diferenças entre uma fé serena e amadurecida e uma fé adoecida e sem bases sólidas. É sobre esta dicotomia que precisamos falar.
Ter fé é acreditar que uma Força Superior nos sustenta os passos guiando os nossos caminhos e nos protegendo ao longo das estradas de uma vida cheia de percalços e perigos. Crer é deparar-se com um início de estrada pouco iluminado e sem qualquer luz que nos dê ideia do que nos aguarda mais à frente e, ainda assim, colocar o pé e se pôr a caminhar com firmeza.
Neste andor sereno e maduro, um pode chamar a Força Superior de Deus, enquanto outros irmãos o denominam Adonay, Jeová, Allah, Krishna, Olorum, Zambi, Jah.... Não importa! Quem de nós pode responder, vestido da verdade absoluta, que é Deus e qual o Seu nome?
Se conceituar Deus for dizer que Ele é “a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” (KARDEC, 2022, p. 47), “soberanamente justo e bom” (KARDEC, 2022, p. 23), entendemos que a Ele agrada a fé que une e constrói recantos de paz. A Deus agrada a adoração sincera, a que sai direto do nosso coração, sem palavras decoradas, mas reais, num instante de intimidade onde externamos de nós aquilo que Ele conhece de cor. A um Pai soberanamente justo e bom importa que Seus filhos tracem um caminho reto na vigilância de si mesmos, no amor, na fraternidade e na caridade. Deus, sendo Deus, não se apega à forma, mas ao conteúdo.
Aquele cara legal que passou por aqui há mais de dois mil anos nos alertou sobre isso: “Nem todo o que diz Senhor, Senhor! Entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mateus 7:21). E o que fizeram com Jesus? Crucificaram-no; não para nos redimir de nossos pecados, mas por motivos políticos. Quais? Ganância e poder. Jesus tirou de Deus a capa da tirania, de um Pai vingativo que exigia de Seus filhos sacrifícios dolorosos e aviltantes que provassem a Ele o quanto era amado. Ora, como um Ser Perfeito seria vaidoso a tal ponto? Jesus veio falar de amor, mas, infelizmente, Suas lições seguem ou incompreendidas ou desfiguradas, pois amor, meus irmãos, não domina pessoas. Já a religião sim, ela domina, via de regra, pelo medo, lembrando que nem Deus ou Jesus criaram religião alguma.
Ah, mas Jesus criou sim, pois disse: “[...] tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja [...]” (Mateus 16:18). Que significa igreja, meus irmãos? Aprendamos!
“Este termo tem origem no grego ekklesia, que quer dizer uma assembleia de cidadãos livres. Foi adotado pelos autores do Novo Testamento e empregado para referir a uma Nova Aliança do povo de Deus. Com o passar do tempo, a palavra igreja adquiriu um novo significado: edificação dedicada ao culto religioso” (VESCHI, 2020, on-line). Cristalino, não?
Quando Jesus disse a tal frase, por certo estava se referindo aos Seus ensinamentos e exemplos que, se devidamente praticados, levaria todos aos melhores caminhos. Mas, ao contrário, até hoje os atalhos são preferíveis e Jesus, caso retornasse por amor à nossa pequenez, correria sério risco de ser novamente assassinado, pois a forma segue importando muito mais que o conteúdo e a essência de cada um.
São justamente aqueles que priorizam a forma os que possuem a fé mais fraca! Por quê? Porque não é necessariamente fé, mas, mormente, sede de poder, ganância, necessidade de dominar massas que perpetuem o ciclo de medo. É neste grupo que mora a intolerância religiosa, de onde ela emerge em violência e latente ignorância dos que ouviram sem escutar. Lembremo-nos: A forma é que importa, e se você exerce a sua fé diferentemente da deles, você é errado, pois só a fé debilitada tem a empáfia de se intitular como verdade absoluta.
Vamos aos fatos! Reportagem de Alan Cardoso à CNN, datada de 22 de janeiro de 2025, informa que “o Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa em 2024, um aumento de mais de 80% em relação a 2023, que teve 2.128 casos, segundo dados do canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Disque 100” (CARDOSO, 2025, on-line).
Em termos geográficos, lidera o ranking o estado de São Paulo (com 919 casos de intolerância religiosa), seguido do Rio de Janeiro (com 764 práticas criminosas) e a Bahia (com a triste marca de 223 violações). O menos surpreendente, infelizmente, é que os maiores alvos de tais condutas delituosas foram a Umbanda e o Candomblé, ambas religiões de matriz africana (CARDOSO, 2025, on-line). A reportagem também informa que os evangélicos figuraram no ranking, com 111 registros no ano de 2024, 50 a mais que em 2023 (CARDOSO, 2025, on-line).
Os relatos das violências sofridas são diversos. Num caso, um pai de santo celebrava o culto em seu terreiro de Candomblé em Vitória da Conquista/BA, na noite de 24 de janeiro de 2022. Então ele ouviu em alto e bom som, dentre outras frases, Jesus Salva! É que do lado de fora do terreiro um homem de denominação religiosa protestante decidiu estacionar o seu carro para que a cerimônia não prosseguisse e ele conseguisse exorcizar quem chegasse ao local (BERNARDO, 2023, on-line).
Em abril do mesmo ano, uma adolescente de 16 anos foi agredida numa escola de Joinville/SC, por ter dito numa conversa com uma colega, que era adepta da Umbanda, sendo acusada de cultuar o demônio (BERNARDO, 2023, on-line).
Já em novembro, uma mãe de santo visitaria e atenderia um paciente, adepto do Candomblé, que estava internado na UTI de um hospital do Rio de Janeiro, o que é um direito inclusive (Lei nº 9.982/2000), mas foi sumariamente impedida de adentrar o estabelecimento (BERNARDO, 2023, on-line).
Os casos escalam rapidamente para violências assombrosas. Uma mulher, na cidade de Macaé/RJ, ouvia músicas de São Jorge e de Exu, e estava no portão de sua casa. Foi então surpreendida com um golpe de facão em seu olho, agressão perpetrada por um vizinho que afirmou que não queria ouvir música de macumba (SOUTO, 2022, on-line).
Uma mãe, já devidamente absolvida pela justiça, foi denunciada por lesão corporal leve e omissão por ter levado sua filha de 10 anos a um ritual num terreiro de Candomblé, um ritual de cura que fazia um corte superficial na pele. Embora absolvida, nunca mais viu a filha. O juiz do caso, inclusive, aventou que a denúncia era fundamentada em intolerância religiosa, relembrando que adeptos da religião judaica são submetidos à circuncisão, e isso não é considerado uma conduta criminosa (SOUTO, 2022, on-line).
Como mencionado anteriormente, os evangélicos também figuram nos dados de 2024, como vítimas de ações de intolerância religiosa, pois muitos são ridicularizados por sua fé, alvos de piadas e taxados como pessoas facilmente manipuláveis (FANTÁSTICO, 2024, on-line).
Os católicos também não passam incólumes, mormente no que diz respeito às imagens. Em 2023, em Conselheiro Lafaiete/MG, a imagem de Nossa Senhora das Dores foi vandalizada, tendo seu rosto arrancado e os seus dedos quebrados. Tratava-se de uma imagem antiga, adquirida há mais de cem anos e que era utilizada durante as celebrações da Semana Santa. Outra imagem, agora a de Nossa Senhora de Fátima, foi vandalizada em Maceió, quebrada, estilhaçada (ACI DIGITAL, 2023, on-line).
Quantos terreiros já foram invadidos e depredados? Quantas imagens de Santos foram quebradas? Quantas pessoas são discriminadas pela crença que professam? Quantos livros foram queimados? Quantos muçulmanos são automaticamente taxados como terroristas? Quantos tiveram os direitos religiosos tolhidos pela agressão da tal fé fraca que só pode se sobrepor pela força? Mas eles ainda matam!
No Brasil, o dia 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, que foi instituído pela Lei nº 11.635/2007, para relembrar a Ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, Mãe Gilda, fundadora do terreiro de Candomblé Ilê Asé Abassá. Sua casa e seu terreiro foram invadidos por um grupo de outra vertente religiosa que a acusavam de charlatanismo. Ela e seu marido “foram perseguidos, sofreram várias agressões físicas e verbais, e depredações dentro do espaço religioso. Após o ocorrido teve um infarto fulminante e morreu” (JOSÉ, 2021, on-line).
São apenas poucos exemplos dos tantos que poderiam estender este artigo. Trata-se de tema que precisa ser discutido sem tabus, sem melindres, compreendido em suas nuances, pois não são apenas atos de violência física que configuram a intolerância religiosa. Quando generalizamos que adeptos da religião x, y ou z são desrespeitosos, fanáticos, etc., estamos sendo intolerantes, pois em toda e qualquer denominação religiosa há os que ultrapassam limites e agem equivocadamente embasados em suas convicções e extremismos pessoais. Se alguém da religião x praticou determinado ato, foi ele, não a religião em si. Não será com mais ódio que combateremos a triste realidade que assola a nossa sociedade.
Intolerância religiosa é crime tipificado na lei e é inafiançável! As denúncias devem ser feitas por meio do disque 100, um canal do Governo Federal que recebe denúncias de violações aos direitos humanos, assim como também pode-se ir a uma delegacia ou procurar a Ouvidoria de Direitos Humanos de cada estado.
O que não dá mais é para tolerar o intolerável, conviver com o que ameaça a existência de quem pensa diferente. Nas palavras de Papa Francisco, “como é possível que hoje muitas minorias religiosas sofram discriminação ou perseguição? Como permitimos que nesta sociedade altamente civilizada existam pessoas que são perseguidas simplesmente por professar publicamente a sua fé? Isso não só é inaceitável, é desumano, é insano” (VATICAN NEWS, 2022, on-line).
Todas as religiões são caminhos que trilhamos visando o objetivo de sermos melhores para nós e para os outros. Religião não é salvo-conduto de caráter, de ascendência moral, de evolução ou de intelectualidade. Religião é uma sala onde se reúnem os adeptos que por meio dela compreendem com mais facilidade o objetivo final. Alguns permanecerão ali na sala, poucos abrirão a porta que ali existe, a que nos leva à Espiritualidade.
Não, não estamos falando da Espiritualidade do Espiritismo! Estamos falando do desenvolvimento da essência de quem somos: Espíritos! Da lapidação de vícios enraizados, na prática de nossas virtudes em prol do bem comum, da busca por ser melhor a cada dia com o aprendizado atento e humilde das lições da vida. Este é o objetivo das religiões, mas nem todos o compreendem.
Conforme nos diz Padre Fábio de Melo, “nem sempre as convicções religiosas são capazes de gerar bons cidadãos. Não é a religiosidade que transforma a vida, mas a espiritualidade que decorre dela. Deveria ser natural, mas nem sempre é. Das religiões, enquanto estatutos e práticas rituais, brotariam espiritualidades, homens e mulheres movidos pelo Deus que a religião tornou conhecido. Há pessoas que, na tentativa de viver uma espiritualidade, se limitam a praticar uma religião. Nem sempre a religião consegue melhorar uma estrutura social. Seria ilusão pensar que as pessoas são mais éticas porque são religiosas” (KARNAL; MELO, 2017, p. 66).
E com esta reflexão, deixo outra, para que não nos digam que deixamos alguém de fora. Um ateu, de forma muito consciente, incita-nos: “Perguntaram um dia a alguém se havia ateus verdadeiros. Você acredita, respondeu ele, que haja cristãos verdadeiros? (DENIS DIDEROT).
Fiquemos agora com a nossa reflexão íntima! Que assim seja, amém, shalon e axé para cada um!
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Referências:
ACI DIGITAL. Vandalismo contra imagem de Nossa Senhora é “intolerância religiosa”, diz padre em Minas. 2023. Disponível em: https://www.acidigital.com/noticia/54587/vandalismo-contra-imagem-de-nossa-senhora-e-%E2%80%9Cintolerancia-religiosa%E2%80%9D-diz-padre-em-minas. Acesso em: 11/03/2025.
BERNARDO, André. ‘Liberdade religiosa ainda não é realidade’: os duros relatos de ataques por intolerância no Brasil. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2023/01/30/liberdade-religiosa-ainda-nao-e-realidade-os-duros-relatos-de-ataques-por-intolerancia-no-brasil.htm. Acesso em: 10/03/2025.
BÍBLIA ONLINE. Mateus 7:21. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/7/21. Acesso em: 10/03/2025.
BÍBLIA ONLINE. Mateus 16:18. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/16/18+. Acesso em: 10/03/2025.
CARDOSO, Alan. Intolerância religiosa no Brasil cresceu mais 80%, diz estudo. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/intolerancia-religiosa-no-brasil-cresceu-mais-de-80-diz-estudo/. Acesso em: 10/03/2025.
FANTÁSTICO. Brasil tem aumento de denúncias de intolerância religiosa; veja avanços e desafios no combate ao crime. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/01/21/brasil-tem-aumento-de-denuncias-de-intolerancia-religiosa-veja-avancos-e-desafios-no-combate-ao-crime.ghtml. Acesso em: 11/03/2025.
JOSÉ, Marta. 21 de janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. 2021. Disponível em: https://justica.sp.gov.br/index.php/21-de-janeiro-dia-nacional-de-combate-a-intolerancia-religiosa/. Acesso em: 11/03/2025.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. Campos dos Goytacazes/RJ: Editora Letra Espírita. 2022.
KARNAL, Leandro; MELO, Fábio de. Crer ou não crer: uma conversa sem rodeios entre um historiador ateu e um padre católico. São Paulo: Editora Planeta. 2017.
SOUTO, Lívia. Mulher leva facada após vizinho acusá-la de ouvir ‘música de macumba’. 2022. Disponível em; https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/06/15/perdi-um-olho-por-intolerancia-religiosa-crime-atinge-mais-as-mulheres.htm. Acesso em: 11/03/2025.
VATICAN NEWS. O Papa: liberdade religiosa é valorizar os irmãos em suas diferenças. 2022. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-01/papa-francisco-intencao-oracao-janeiro-liberdade-religiosa.html. Acesso em: 11/03/2025.
VESCHI, Benjamin. Etimologia de igreja. 2020. Disponível em: https://etimologia.com.br/igreja/. Acesso em: 11/03/2025.
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